Esta obra expõe ideias e costumes normalizados em sua época
A cidade de Sant’Ana dos Pescadores fora em tempos idos uma cidadezinha próspera. Situada entre o mar e a montanha que escondia vastas vargens férteis, e muito próximo do Rio, os fazendeiros das planuras transmontanas preferiam enviar os produtos de suas lavouras, através de uma garganta, transformada em estrada, para, por mar, trazê-los ao grande empório da corte. Ao contrário, faziam com as compras que aí faziam. Dessa forma, erguida à condição de uma espécie de entreposto de uma zona até bem pouco fértil e rica, ela cresceu e tomou ares galhardos [elegantes] de cidade de importância. As suas festas de igreja eram grandiosas e atraíam fazendeiros e suas famílias, alguns tendo mesmo casas de recreio apalaçadas nela. O seu comércio era por isso rico com o dinheiro que os tropeiros lhe deixavam. Veio, porém, a estrada de ferro e a sua decadência foi rápida. O transporte das mercadorias de “serra acima” se desviou dela e os seus sobrados deram em descascar como velhas árvores que vão morrer. Os mercadores ricos a abandonaram e os galpões de tropa desabaram. Entretanto, o sítio era aprazível [afável], com as suas curtas praias alvas que foram separadas por desabamentos de grandes moles de granito da montanha verdejante do fundo do vilarejo, formando aglomerações de grossos pedregulhos.
A gente pobre, após a sua morte, deu em viver de pescarias, pois o mar aí era rumoroso e abundante de pescado de bom quilate. Tripulando grandes canoas de voga, os seus pescadores traziam o produto de sua humilde indústria, vencendo mil dificuldades, até Sepetiba e, daí, a Santa Cruz, onde ele era embarcado em trem de ferro até o Rio de Janeiro.
Os ricos de lá, além dos fabricantes de cal de marisco, eram os taverneiros que, nessas vendas, como se sabe, vendem tudo, mesmo casimiras [tecido de lã] e arreios, e são os banqueiros. Lavradores não havia e até frutas iam do Rio de Janeiro.
As pessoas importantes eram o juiz de direito, o promotor, o escrivão, os professores públicos, o presidente da Câmara e o respectivo secretário. Este, porém, o Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos antigos Nabores de Azevedo de “serra acima” e dos Breves, ricos fazendeiros, era o mais. Era o mais porque, além disto, se fizera o jornalista popular do lugar.
A ideia não fora dele, a de fundar O Arauto, órgão dos interesses da cidade de Sant’Ana dos Pescadores; fora do promotor. Este veio a perder o jornal, de um modo curioso. O doutor Fagundes, o tal de promotor, começou a fazer oposição ao doutor Castro, advogado no lugar e, no tempo, presidente da Câmara. Nabor não via com bons olhos aquilo e, certo dia, foi ao jornal e retirou o artigo do promotor e escreveu um descabelado de elogios ao doutor Castro, porque ele tinha suas luzes, como veremos. Resultado: Nabor, o nobre Nabor, foi nomeado secretário da Câmara e o promotor perdeu a importância de melhor jornalista local, que coube, daí por diante e para sempre, a Nabor. Como já disse, este Nabor recebera luzes num colégio de padres de Vassouras ou Valença, quando os pais eram ricos. O seu saber não era lá grande; não passava de gramaticazinha portuguesa, das quatro operações e umas citações históricas que aprendera com Fagundes Varela, quando este foi hóspede de seus pais, em cuja fazenda chegara, certa vez, de tarde, numa formidável carraspana e em trajes de tropeiro, calçado de tamancos.
O poeta gostara dele e lhe dera algumas noções de letras. Lera o Macedo e os poetas do tempo, daí o seu pendor para coisas de letras e de jornalismo. Herdou alguma coisa do pai, vendera a fazenda e viera morar em Sant’Ana, onde tinha uma casa, também pela mesma herança. Casou aí com uma moça de alguma pecúnia [fortuna] e vivia a fazer política e a ler os jornais da corte, que assinava. Deixou os romances e apaixonou-se por José do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Joaquim Serra e outros jornalistas dos tempos calorosos da abolição. Era abolicionista, porque... os seus escravos, ele os tinha vendido com a fazenda que herdara; e os poucos que tinha em casa, dizia que não os libertava, por serem da mulher. O seu abolicionismo, com a Lei de 13 de maio, veio dar, naturalmente, algum prejuízo à esposa...
Enfim, após a República e a Abolição, foi várias vezes subdelegado e vereador de Sant’Ana. Era isto, quando o promotor Fagundes lembrou-lhe a ideia de fundar um jornal na cidade. Conhecia aquele a mania do último, por jornais, e a resposta confirmou a sua esperança:
– Boa ideia, “Seu” Fagundes! A “estrela do Abraão” (assim era chamada Sant’Ana) não ter um jornal! Uma cidade como esta, pátria de tantas glórias, de tão honrosas tradições, sem essa alavanca do progresso que é a imprensa, esse fanal [farol] que guia a humanidade – não é possível!
– O diabo, o diabo... fez Fagundes.
– Porque o diabo, Fagundes?
– E o capital?
– Entro com ele.
O trato foi feito e Nabor, descendente dos Nabores de Azevedo e dos famigerados Breves, entrou com o cobre; e Fagundes ficou com a direção intelectual do jornal. Fagundes era mais burro e, talvez, mais ignorante do que Nabor; mas este deixava-lhe a direção ostensiva porque era bacharel. O Arauto era semanal e saía sempre com um artiguete laudatório do diretor, à guisa de artigo de fundo, umas composições líricas, em prosa, de Nabor, aniversários, uns mofinos anúncios e os editais da Câmara Municipal. Às vezes, publicava certas composições poéticas do professor público. Eram sonetos bem quebrados e bem estúpidos, mas que eram anunciados como “trabalhos de um puro parnasiano que é esse Sebastião Barbosa, exímio educador e glória da nossa terra e da nossa raça”.
Às vezes, Nabor, o tal dos Nabores de Azevedo e dos Breves, honrados fabricantes de escravos, cortava alguma coisa de valia dos jornais do Rio e o jornaleco ficava literalmente esmagado ou inundado. Dentro do jornal, reinava uma grande rivalidade latente entre o promotor e Nabor. Cada qual se julgava mais inteligente por decalcar [imitar] ou pastichar [plagiar] melhor um autor em voga.
A mania de Nabor, na sua qualidade de profissional e jornalista moderno, era fazer do O Arauto um jornal de escândalo, de altas reportagens sensacionais, de enquetes com notáveis personagens da localidade, enfim, um jornal moderno; a de Fagundes era a de fazê-lo um quotidiano doutrinário, sem demasias, sem escândalos – um Jornal do Comércio de Sant’Ana dos Pescadores, a “Princesa” do “O Seio de Abraão”, a mais formosa enseada do Estado do Rio.
Certa vez, aquele ocupou três colunas do grande órgão (e achou pouco), com a narração do naufrágio da canoa de pescaria – “Nossa Senhora do Ó”, na praia da Mabombeba. Não morrera um só tripulante. Fagundes censurou-lhe:
– Você está gastando papel à toa!
Nabor retrucou-lhe:
– É assim que se procede no Rio com os naufrágios sensacionais. Demais: quantas colunas você gastou com o artigo sobre o direito de cavar “tariobas”, nas praias.
– É uma questão de marinhas e acrescidos; é uma questão de direito.
Assim, viviam aparentemente em paz, mas, no fundo, em guerra surda.
Com o correr dos tempos, a rivalidade chegou ao auge e Nabor fez o que fez com Fagundes. Reclamou este e o descendente dos Breves respondeu-lhe:
– Os tipos são meus; a máquina é minha; portanto, o jornal é meu.
Fagundes consultou os seus manuais e concluiu que não tinha direito à sociedade do jornal, pois não havia instrumento de direito bastante hábil para prová-la em juízo; mas, de acordo com a lei e vário jurisconsultos notáveis, podia reclamar o seu direito aos honorários de redator-chefe, à razão de 1:800$000. Ele o havia sido quinze anos e quatro meses; tinha, portanto, direito a receber 324 contos, juros de mora e custas.
Quis propor a causa, mas viu que a taxa judicial ia muito além das suas posses. Abandonou o propósito; e Nabor, o tal dos Azevedo e dos Breves, um dos quais recebera a visita do Imperador, numa das suas fazendas, na da Grama, ficou único dono do jornal. Dono do grande órgão, tratou de modificar-lhe o feitio carrança [saudosista] que lhe imprimira o pastrana [grosseiro] do Fagundes. Fez inquéritos com o sacristão da irmandade; atacou os abusos das autoridades da Capitania do Porto; propôs, a exemplo de Paris, etc., o estabelecimento do exame das amas de leite, etc., etc. Mas, nada disso deu retumbância a seu jornal. Certo dia, lendo a notícia de um grande incêndio no Rio, acudiu-lhe a ideia de que se houvesse um em Sant’Ana, podia publicar uma notícia de "escacha" [de arromba], no seu jornal, e esmagar o rival – O Baluarte – que era dirigido pelo promotor Fagundes, o antigo companheiro e inimigo.
Como havia de ser? Ali, não havia incêndios, nem mesmo casuais. Esta palavra abriu-lhe um clarão na cabeça e completou-lhe a ideia. Resolveu pagar a alguém que atacasse fogo no palacete do doutor Gaspar, seu protetor, o melhor prédio da cidade. Mas, quem seria, se tentasse pagar a alguém? Mas... esse alguém se fosse descoberto denunciá-lo-ia, por certo. Não valia a pena... Uma idéia! Ele mesmo poria fogo no sábado, na véspera de sair o seu hebdomadário – O Arauto. Antes escreveria a longa notícia com todos os “ff” e “rr”. Dito e feito. O palácio pegou fogo inteirinho no sábado, alta noite; e de manhã, a notícias saía bem-feitinha. Fagundes, que era já juiz municipal, logo viu a criminalidade de Nabor. Arranjou-lhe uma denúncia, processo e o grande jornalista Salomão Nabor de Azevedo, descendente dos Azevedos, do Rio Claro, e dos Breves, reis da escravatura, foi parar na cadeia, pela sua estupidez e vaidade.